LETRAMENTO


LETRAMENTO E LEITURA DA LITERATURA
PGM 1 – ESCOLA, LEITURA E VIDA
 
Cecília Maria Aldigueri Goulart 1
Gonzaguinha, em conhecida letra de música, busca definir o que é a vida e nos diz que, de acordo com a pureza da resposta das crianças, a vidaé bonita, é bonita, é bonita”. Para os adultos, segundo o compositor, a vida é uma doce ilusão, é maravilha ou sofrimento, é alegria ou lamento, é o sopro do Criador, numa atitude repleta de amor, a vida é viver, entre outras possibilidades de definição apresentadas pelo autor. 
E para nós, professores, o que é a vida? 
A vida parece ser tudo isso de que nos fala o poeta-cantor e, considerando a especificidade de nossa profissão, nos remete à responsabilidade que temos de trabalhar lidando com a vida de tantas crianças. 

De que modo podemos pensar a relação entre a escola e a vida? Como a escola e as atividades e conteúdos que ali são trabalhados dialogam com a vida das crianças? O que quer dizerensinar partindo da realidade social das crianças”, essa frase tão usual em escolas, em propostas pedagógicas? Significaria partir da vida das crianças? Do que as crianças sabem, gostam, têm medo, de como sentem o mundo? E como essas vivências, experiências e sentimentos aparecem nas salas de aula?

Chegamos a uma questão importante. Vocês perceberam como a fala das pessoas nos elementos para conhecê-las, saber de seu estado de espírito, seu temperamento, suas origens sociais? O sotaque, o tom de voz, determinadas palavras usadas, o modo como se utilizam as construções sintáticas, as referências, e tantas outras marcas, deixam entrever aspectos das pessoas que, muitas vezes, elas não se dão conta de que estão sendo evidenciadas. Isso acontece com todos.

Tive acesso pouco tempo a um texto de uma receita culinária que me chegou assim:
Receita Casera Minera de Môi de repôi nu ài e ói.
Ingridienti:
5 denti di ái
3 cuié di ói
1 cabeça di repôi
1 cuié di mastumati
 
Modi fazê:
casca o ái, pica o ái i soca o ái cum sá
quenta o ói na cassarola
foga o ái socado no ói quenti
pica o repôi beeemmm finim
fogá o repôi no ói quenti junto cum ái fogado
põi a mastumati mexi cum a cuié prá fazê o môi.
 
Sirva cum rôis e melete.
 
Dá prá dois cumê.
 
(Bão prá fazê no domingo.)
Fechem os olhos e pensem num mineiro falando a receita... Ora, o que a escrita desta receita expressa? Expressa de uma forma jocosa, caricatural, o modo como os mineiros, de um modo geral, falam. Mas só os mineiros têm modos particulares de usar a língua? Certamente, não. Poderíamos escrever a fala chiada do carioca, a fala “cantada” dos nordestinos, e “mutchas” outras características da fala de grupos sociais, não só geográficas, regionais, mas também ligadas a profissões, à idade, e outras. O modo de falar de uma certa forma apresenta a pessoa.

Vejamos uma outra situação. Se imaginarmos uma cena em que, numa entrevista para um emprego, o entrevistador pergunta à candidata ao cargo: “Como soube dessa vaga?” e a candidata responde: “Meu marido ouviu no rádio do carro que estavam abertas as inscrições. Assim que soube, meu filho telefonou para minha mãe pedindo que rezasse um terço para que eu fosse aprovada!” A informação requerida pelo entrevistador, provavelmente, seria simplesmente “Pelo rádio” ou “Meu marido ouviu no rádio”, já que possivelmente fez a pergunta com o intuito de fazer um levantamento da eficácia dos meios de comunicação utilizados para a divulgação da vaga. Ao perguntar, entretanto, recebeu junto com a informação solicitada, outras não requeridas: a candidata é casada; o marido tem carro, o carro tem um rádio; tem pelo menos um filho, que não é pequeno, pois já utiliza o telefone com desenvoltura; deve ter telefone em casa; há um forte desejo na família de que a moça trabalhe; a moça tem mãe viva, que professa uma religião e reza; além de outras suposições possíveis. Quantas informações o empregador teve da candidata apenas com uma pergunta que não era pessoal!

E as falas dos nossos alunos, o que expressam? As falas deles, como as nossas, expressam a vida que vivem, o que sabem, seus valores, sentimentos e desejos, como a fala de qualquer um de nós. As crianças trazem para a escola seus conhecimentos, isto é, os conteúdos de suas vidas, o que suas vidas contêm. E qual é a função da escola? A função da escola deve ser a de proporcionar situações em que as crianças ampliem e aprofundem o sentido da vida, ampliando e aprofundando conteúdos que lhes permitam compreender a realidade de diversas maneiras. 

Para ampliar e aprofundar o sentido da vida de nossos alunos, partindo de suas realidades, precisamos ouvi-los, instigá-los a falar, conversar, discutir. Nessas conversas e discussões, vamos conhecendo os alunos, suas histórias e conhecimentos, e eles também vão se conhecendo e nos conhecendo. Problematizando os casos que contam, as histórias, os temas que surgem e levando-os a se interessarem por outras realidades, por outros temas, por outras questões e respostas, vamos indicando que o mundo é grande, que as vidas das pessoas são diferentes, que há modos diferentes de resolver um mesmo problema; que podemos também dar explicações diversas sobre um mesmo fato, dependendo de que lugar falamos.

O sol, por exemplo, pode ser explicado como uma bola de fogo, uma fonte de calor, pode significar luz, como em “o sol da minha vida”, e um ideal elevado, como em “o sol da liberdade”. Pode, também, como aparece na primeira acepção do Dicionário Houaiss, significar:

“estrela de quinta grandeza que faz parte da galáxia Via-Láctea e que é o centro do sistema planetário, do qual participa a Terra.”

Conforme observamos, dependendo do espaço de onde produzimos a nossa fala, isto é, do conhecimento do cotidiano, da física, da literatura, da astronomia, da geografia, da história, da religião, vamos lendo a realidade de modos diversos.

Como nos ensinou Paulo Freire, a leitura do mundo precede a leitura da palavra e, acrescentamos nós, depois de um determinado momento vão as duas caminhando lado a lado. Para que isso aconteça, é necessário que, nas rodinhas de conversa, na discussão de temas, na apresentação de novas questões para as crianças, materiais escritos estejam sempre presentes ou, pelo menos disponíveis para consulta, mesmo se as crianças ainda não souberem ler. 

Na relação entre a escola e a vida está a linguagem escrita que nas sociedades letradas perpassa todas as nossas atividades, de forma mais ou menos direta, mais e menos intensamente. Mesmo que consideremos grupos sociais pouco letrados, a escrita está na placa da rua, no dinheiro, moeda e papel, nos meios de transporte, nos documentos, nas embalagens e rótulos. A noção de letramento, desse modo, está associada às praticas sociais escritas e também às práticas sociais orais, que estas são muito marcadas pelas formas como escrevemos e pelos usos e funções sociais da escrita. para ilustrar, uma pequena evidência desse fato é a inserção em nossas falas de expressões comoponto final”, 

parêntese”, “letra maiúscula”, como em:

Vamos botar um ponto final nessa discussão...”

Deixa eu fazer um parêntese na conversa...”

Ele é um homem com H maiúsculo...”

E até mesmo em determinadas palavras que são hipercorrigidas (corrigidas para mais). Quando uma pessoa falaadevogadoousenosite”, em vez de advogado e sinusite, está agindo da mesma forma que uma criança que escrevepepoca”, “bececletaeprofessoura”. Ora, ela que a palavra doce é falada comodoci”, palavras como roupa e pouca são faladas comoropaepoca”, o que faz então? Escreve-as como aparece acima, trocando oiporee ooporou”, utilizando aregraque depreendeu porque é uma pessoa inteligente, que pensa e, por isso, estabelece relações, faz analogias. É a língua escrita atuando em pessoas que muitas vezes são analfabetas.

Todas as questões apresentadas acima contextualizam uma sociedade em que é possível reconhecer crianças e adultos não alfabetizados, mas letrados, posto que têm as suas vidas e as suas falas atravessadas de forma forte pela linguagem escrita: reconhecem vários materiais escritos e sabem o que contêm; sabem ditar um texto para ser escrito, considerando a sintaxe da escrita e diferentes tipos de texto; e são capazes de compreender textos lidos sem dificuldades.

Isso com certeza não acontece com todas as crianças e adultos que ainda não sabem ler e escrever. É preciso conviver em espaços letrados e com pessoas letradas para ter aqueles conhecimentos. Espaços letrados podem ser as próprias casas das pessoas, as igrejas ou outros espaços religiosos, associações, sindicatos, cinema, teatro, isto é, espaços em que a língua escrita tem uma presença marcante e forte. A leitura de mundo das pessoas que têm acesso a espaços letrados como esses se diferencia da leitura de pessoas que não o têm.

A relação entre a escola, a leitura e a vida pode ser muito significativa se não distanciarmos os elos dessa cadeia. A melhor coisa que fazemos por nossos alunos é criar espaços na sala de aula para conversas, para manuseio e leitura de materiais escritos variados e situações em que escrevam atendendo a múltiplas propostas para que possam se tornar íntimos de diversos tipos de texto que, na sociedade letrada, cumprem funções específicas e diferenciadas.

Sugestões de leitura:
Foucambert, J. A Leitura em Questão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
Frago, A. V. Alfabetização na Sociedade e na HistóriaVozes, Palavras e Textos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
Freire, P. A Importância do Ato de Ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1985.
Pennac, D. Como um Romance. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
Smolka, A.L.B. A criança na fase inicial da escrita - a alfabetização como processo discursivo. São Paulo: Cortez, 1988.
Terzi, S. B. A Construção da Leitura. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp: Pontes, 1997. 
NOTAS: 
1 Doutora em Letras pela PUC/Rio.PROALEPrograma de Alfabetização e Leitura. Faculdade de Educação/Universidade Federal FluminenseUFF.
 

SALTO PARA O FUTURO / TV ESCOLA
WWW.TVEBRASIL.COM.BR/SALTO




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